O problema consiste na utilização da boa-fé criada na opinião pública pelaLava-Jato para ignorar as bases do nosso ordenamento legal
Existe um fenômeno perverso em curso no Brasil que atende pelo nome de “direito penal do inimigo”. O conceito foi proposto pelo jurista alemão Günther Jakobs nos anos 1980. Funciona assim: algumas pessoas são apontadas como inimigas da sociedade. A partir daí, perdem todas as garantias penais e processuais a que teriam direito como cidadãos. O importante é neutralizá-los a qualquer custo.
Violações de sigilo telefônico entre clientes e advogados são um exemplo disso. Vazamentos seletivos, idem, assim como conduções coercitivas de pessoas que nunca manifestaram qualquer objeção a falar voluntariamente a investigadores.
Não há aqui qualquer defesa da ilegalidade. Pelo contrário: o cenário descortinado pela Lava-Jato é realmente assustador e merece, como toda infração penal, a resposta estatal adequada.
O problema consiste na utilização da boa-fé criada na opinião pública pela Lava-Jato para ignorar as bases do nosso ordenamento legal. Cito dois casos, um do Judiciário e outro do Ministério Público Federal.
No fim do ano passado, o Tribunal Federal da 4ª Região (Sul) decidiu isentar os operadores da Lava-Jato de seguirem o “regramento genérico, destinado aos casos comuns” diante do ineditismo das investigações.
Se não é necessário seguir o “regramento genérico”, estarão liberados os magistrados para legislar?
Em um exemplo mais recente, entre tantos outros que caberiam aqui, procuradores do Ministério Público Federal do Distrito Federal pediram nesta semana, entre outras medidas cautelares, que toda a diretoria de uma empresa, a Eldorado Celulose, fosse destituída, por causa de suspeitas sobre dois executivos.
É uma ofensa gritante à noção de individualização das sanções, que norteia todo o nosso sistema legal — não se restringem os direitos de grupos genéricos, mas sim de pessoas, por suas ações específicas. A petição ainda busca substituir tal diretoria por representantes de fundos que detêm apenas 17% da empresa, uma espécie de desapropriação com chancela estatal.
No campo econômico, a intromissão indevida do Estado na iniciativa privada não apenas causa insegurança jurídica entre os grandes investidores, minando o crescimento do país, mas põe em risco o sustento de qualquer pequeno empreendedor cujo negócio está sujeito a uma petição ou despacho arbitrários.
Quando os agentes estatais passam a ter salvo-conduto, o inimigo pode estar em qualquer lugar — ou ser qualquer um de nós