Por Arthur N. S. Amado
Especialista em Direito Tributário.
O princípio da “insignificância” ou “da bagatela” surgiu após a segunda guerra mundial devido aos pequenos furtos ocorridos na Europa, assim, seu surgimento aconteceu, puramente, como cunho de proteção a bens materiais valorados economicamente.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
2. DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO E DIREITO TRIBUTÁRIO PENAL
2.1. RESISTÊNCIA AOS TRIBUTOS
2.2. DIREITO TRIBUTÁRIO PENAL – INFRAÇÕES E SANÇÕES TRIBUTÁRIAS
2.3. PLURALIDADE DE PENAS E VEDAÇÃO AO BIS IN IDEM
3. PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE NO DIREITO PENAL COMO LIMITE DO IUS PUNIENDI E IUS POENALE
3.1. PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE, RESULTADO JURÍDICO E SUAS EXIGÊNCIAS
3.1.1. A Posição Sistemática da Lesão ou Perigo Concreto de Lesão ao Bem Jurídico
3.1.2. As Hipóteses de Subsunção Formal da Conduta à Descrição Legal sem Ofensa ao Bem Jurídico Protegido
3.2. A EXIGÊNCIA DE CONCRETIZAÇÃO DO BEM JURÍDICO COMO CONDIÇÃO SINE QUA NON DO CARÁTER NECESSARIAMENTE OFENSIVO DO DELITO
3.3. PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA
3.3.1 Administrativização do Direito Penal e sua Deflação
3.3.2. Fuga para o Dualismo Penal com Relativização das Garantias
3.3.3. A natureza fragmentária e subsidiária da intervenção penal
3.3.4. Fragmentariedade, Intolerabilidade da Ofensa e Merecimento de Pena
3.3.5. Subsidiariedade, Idoneidade e Necessidade de Pena
3.3.6. Argumentos Empíricos do Direito Penal Mínimo
3.3.7. Minimalismo e Garantismo
4. REGRA MATRIZ DAS SANÇÕES TRIBUTÁRIAS E PENAIS RELACIONADAS COM O DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES TRIBUTÁRIAS
4.1. LIMITES CONSTITUCIONAIS A IMPOSIÇÃO DE PENAS PELO DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES TRIBUTÁRIAS
5. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO
5.1. PARÂMETROS PARA INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO DIREITO PENAL CONSOANTE O ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
5.2. FALTA DE INTERESSE DA FAZENDA PÚBLICA NA EXEQUIBILIDADE DO DÉBITO TRIBUTÁRIO, FIXAÇÃO E APLICABILIDADE DO QUANTUM AUTORIZATIVO
5.3. EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL NA APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO
5.4. PARÂMETRO PARA A RAZÃO JURISPRUDENCIAL E PATAMAR FIXADO PARA A INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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INTRODUÇÃO
O Direito Penal, bem conhecido por muitos acadêmicos, é regido pelo princípio da fragmentariedade, é de dizer, não protege todos os bens jurídicos, mas, tão somente, os mais relevantes, por conseguinte, não tutela todas as lesões, intervindo nos delitos em que as violações forem consideravelmente graves.
Ligado aos chamados “crimes de bagatela” ou de “lesão mínima”, o princípio da insignificância recomenda que o Direito Penal, pela adequação típica, somente intervenha nos casos de lesão jurídica de certa gravidade, reconhecendo a atipicidade do fato nas hipóteses de perturbações jurídicas mais leves (pequeníssima relevância material).
Saliente-se que esse princípio, muito embora pareça algo do direito moderno, já era aplicado no direito romano, minina non curat praetor, dos fatos mínimos não deve cuidar o juiz (delitos de bagatela).
De tal sorte, quando o delito tiver consequências (lesões) que forem consideradas mínimas, deve ser aplicado o princípio da insignificância, excluindo, portanto, a tipicidade da conduta, não tendo importância, pois, os fatos subjetivos, tais como a culpabilidade do agente. Insta ressaltar, que o princípio suscitado é envolto de discussões, reflexões e críticas na seara do Direito Penal Tributário, alcançando destaque perante os tribunais superiores, como se verá pormenorizadamente.
Desta feita, o escopo do presente arcabouço teórico é trazer a baila o estudo do “Princípio da Insignificância no Direito Penal Tributário”, para tanto, realizar-se-á investigação bibliográfica e jurisprudencial perseguindo o entendimento pleno com a instrução do princípio em comento e identificando, outrossim, os valores de exequibilidade e o entendimento do processo de descriminalização da tipificação penal.
Aplicar-se-á correntes doutrinárias que exortam sobre o Direito Constitucional, Direito Penal, Direito Tributário, dentro destes, o Direito Penal Tributário, legislação a fim e jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros. Também será indispensável, num primeiro momento, uma visão sintética dos princípios vetoriais do Direito Penal pertinente à problemática.
Neste ínterim, ir-se-á investigar, criticar, sugerir e fixar conceitos e avaliações pertinentes a matéria, numa perspectiva histórico-evolutiva. Demais, especificar-se-á o patamar (segundo doutrina e jurisprudência) para a caracterização do fato delituoso, ou seja, crime tributário.
Dentre as razões, ressalte-se que, para a Ciência Jurídica e seus pesquisadores, o presente arcabouço teórico é munido da mais sublime importância, pois apresenta, vastamente, argumentações e teorias basilares do Direito. Demais, a cognição potencialmente auferida agregará sobremodo aos operadores do direito que, hodiernamente, labutam em escritórios de advocacia, tribunais, repartições públicas entre outros. Assim, a presente monografia é um convite responsável ao conhecimento jurídico. Tudo porque neste trabalho se demonstra o significado do princípio da insignificância no ramo do direito Penal Tributário, prescrevendo-se, como tema nuclear, a aplicação de tal princípio conforme doutrina específica, majoritária e jurisprudências dos tribunais superiores pátrios. Neste seguimento, informa-se o quantum fixado para a atipicidade de um fato aparentemente delituoso.
Os métodos de abordagem exegética são o sistemático e o dedutivo, ou seja, pressupondo as fontes do estudo como um conjunto logicamente organizado. O emprego do método sistemático tem por pressuposto um ordenamento dotado de logicidade, assim, aceita a premissa, segue-se que as normas devem ser interpretadas sempre em consonância com as demais integrantes do mesmo ordenamento. O método sistemático, portanto, recomenda a articulação das normas jurídicas entre si, sejam internas ou externas e com os princípios do Direito como a forma de encontrar seu significado.
Como métodos de procedimento, serão empregados os três que seguem: tipológico (Max Weber), comparativo (Montesquieu) e o positivista (Emile Durkheime e Hans Kelsen), estes, de forma entrelaçada se ajustarão (triangularizar-se-ão) e organizarão a coleta de material e um raciocínio congruente para a monografia, considerando, principalmente, as áreas de atuação e os meios de obtenção de dados.
Assim, será minuciosamente feita uma investigação bibliográfica. Para tanto, houve a seleção do conjunto dos objetos que constituirão ou formarão a obra, tendo como preocupação fomentar a estrutura do trabalho e enriquecer a discussão. Como se há de verificar, a exposição destes instrumentos de recolhimento estará estruturada na bibliografia disponível.
Convém notar, por fim, que serão aplicadas as técnicas de hermenêutica e, por conseguinte, a interpretação das fontes disponíveis em prol da tarefa de construir um arcabouço teórico que possibilite enfrentar os problemas da presente investigação de forma satisfatoriamente autônoma.
2. DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO E DIREITO TRIBUTÁRIO PENAL
O Direito é, por natureza, um todo unitário que não pode ser fracionado, e daí seria impossível aceitar a existência de um ramo do Direito que seja absolutamente independente e suficiente em si mesmo. Por tais razões, a idéia de dividir o Direito em ramos só pode ser aceita como recurso didático, para facilitar, pois, o entendimento e a exposição da matéria.
Assim também ocorre com o chamado Direito Tributário Penal ou o Direito Penal Tributário.
Por essa razão é que toda tentativa de sistematização das normas penais relacionadas ao descumprimento de obrigação tributária, que apenas cogite na articulação de um ramo autônomo do Direito Penal, para qualificá-lo de Direito Penal Tributário ou Direito Tributário Penal, certamente encontrará resistências da doutrina. Embora necessária para melhor compreensão da matéria, tal sistematização é aceitável unicamente como um recurso didático, pois de outra forma se poderia perpetrar um verdadeiro atentado contra a natureza do Direito, que, embora polifacético constitua um todo indivisível.
Em artigo publicado na Revista de Direito Tributário n° 34 sob o título “Dos Crimes Contra a Ordem Tributária”, o professor Luiz Alberto Machado[1] repele, com veemência, a hipótese de se articular um “Direito Penal Tributário” ou “Direito Tributário Penal”, dizendo:
No crime fiscal alguns vêem ‘Direito Penal Tributário’ e, outros, ‘Direito Tributário Penal’. Não me parece próprio, porém, dividir-se o Direito Penal para fazê-lo, Administrativo Penal, isto é, se o transformando em mero atributo de cada um dos demais ramos do Direito. Sendo, de um prisma lógico, sancionador, pois que retribui quando a reposição ou a reparação não são mais possíveis (seja pela impossibilidade fática, homicídio; seja pela social ou ética, furto, estelionato), o Direito Penal escolhe, no mundo jurídico, as ações que entenda dever tipificar. Assim, na formação do tipo material (a conduta tipicamente formal ilícita), o Direito Penal elege os bens jurídicos que irá proteger e as condutas que hipoteticamente os ofenderão. Ora, sancionando os preceitos que escolhe nos demais ramos jurídicos, há sempre ‘Direito Penal’, embora, às vezes, como reforço de expressão se lhe agreguem as palavras, tributário, administrativo, econômico, financeiro, comercial etc.. Não é por sancionar-se penalmente a infração ao dever de alimentos, dir-se-á haver Direito Civil Penal ou Direito Penal Civil. Concluo que nem há Direito Penal Tributário, nem Direito Tributário Penal, Apenas Direito Penal. Como, com relação ao estabelecimento da relação obrigacional tributária, há apenas Direito Tributário.
Contudo, essa divisão, tão duramente combatida pelo ilustre professor, não chega a ser um despautério, porquanto pode ser fundamentada, entre outras razões, na natureza da sanção que visa prevenir ou reprimir o descumprimento de obrigação tributária.
Quando o Estado, no exercício de seu direito de instituir e cobrar tributos e contribuições sociais, e observadas às limitações constitucionais a esse poder, cria, por intermédio de lei, uma obrigação de tal natureza, deve determinar com precisão em que circunstâncias essa obrigação surge, quais as limitações e vicissitudes a que está sujeita, como será calculada, e quando deverá ser recolhida, e deve indicar, ainda, quais as outras eventuais formas de sua extinção.
Deve a lei, também, fornecer os elementos necessários para identificar quem são os sujeitos passivos de tal obrigação e quais as penalidades que podem incidir sempre que houver inadimplemento dessa obrigação.
O simples retardamento do cumprimento da obrigação tributária, ou seu descumprimento absoluto, salvo nos casos de suspensão da exigibilidade do crédito tributário previsto no art. 151 do Código Tributário Nacional, criam para o sujeito ativo o direito de impor as penalidades previamente definidas na lei tributária.
Quando, entretanto, o inadimplemento da obrigação tributária decorrer de condutas arroladas como crime na legislação penal, incide a regra geral garantidora do direito que o Estado tem de punir. Assim temos o Direito Tributário Penal quando se cuida das sanções tributárias, assim entendidas aquelas que decorrem da legislação tributária e que são aplicadas pelo descumprimento de qualquer dispositivo legal ou regulamentar relativo à obrigação tributária, principal ou acessória.
O principal traço deste tipo de sanção está em que a penalidade pode ser aplicada independentemente de ficar comprovada a culpabilidade do sujeito passivo, bastando, para isso, que a lei tributária assim determine. Em outras palavras o pressuposto da aplicação da penalidade é a contrariedade ao que estatui a legislação tributária, sem se perquirir acerca da ocorrência de qualquer das formas de culpabilidade, presentes no direito Penal Comum.
Esse princípio informador da aplicação das sanções tributárias está fundamentado no art. 136 do Código Tributário Nacional, assim redigido: “Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato.”
Havendo crime, incidirão as normas do Direito Penal Tributário, que dizem respeito ao conjunto de normas jurídicas que tutelam o patrimônio do sujeito ativo da obrigação tributária e que prescrevem penas privativas de liberdade e multa, sempre que o descumprimento de tais obrigações se der por meio de artifícios fraudulentos, segundo a descrição contida na lei, e que estejam presentes os elementos que informam a culpabilidade.
As sanções são as penas privativas de liberdade e as de multa, ao agente e tão-somente a este. Não obstante, mesmo tendo havido crime, a obrigação tributária continua a existir, até que venha a ser extinta, na forma da lei, e pode vir a ser exigida com acréscimo correspondente a multa.
Assim, havendo crime, as sanções serão aplicadas tanto no campo penal quanto na órbita tributária.
A divisão proposta, tão duramente repelida pelo professor Luiz Alberto Machado, é defendida, com muita fleuma, pelo consagrado professor José Frederico Marques[2], senão vejamos:
A grande maioria dos penalistas contemporâneos (e, sobretudo Grispigni Asua, e entre nós, N. Hungria) entende que o Direito Penal não é constitutivo, opinião essa que vem de J. J. Rousseau, mas apenas direito complementar, visto que o ilícito penal é sempre um plus em relação ao ilícito não penal. Quando o ato contra o Direito, por atingir bem de vida que o legislador entende fundamental à sociedade, exige sanção mais rigorosa, é ele cunhado em figura típica para que adquira os contornos de infração jurídico-penal, com a consequente aplicação, após praticado, da sanctio iuris (sanção jurídica) específica do Direito Penal. O ilícito tributário, enquanto tal recebe o tratamento jurídico que lhe dá o Direito Tributário. Transformado que seja em ilícito penal, ele se estrutura como fato punível de que pode resultar a aplicação da pena, ou de medida de segurança, tudo na forma do que dispuser o Direito Penal. A infração apenas tributária constitui objeto do Direito Tributário Penal, enquanto que o ilícito tributário tipificado como fato punível vem a ser objeto do Direito Penal Tributário. Nenhum deles se estrutura como ciência jurídica autônoma, o Direito Penal Tributário, integra o Direito Penal, e o outro, o Direito Tributário Penal, é parte ou segmento do Direito Tributário.
Insta salientar, que tanto a Lei Tributária como a Lei Penal devem indicar, com precisão, quais as condutas que pretende qualificar como ilícitas a determinar a sanção correspondente, em prestígio ao princípio da legalidade, para permitir ao agente a mais ampla defesa. Para que cumpra o comando constitucional que determina a individualização da pena, a Lei Tributária que comina penalidade deve estabelecer graduações relativas à intensidade ou a natureza da pena, de acordo com as circunstâncias em que se verificou o descumprimento da obrigação tributária.
Haverá crime e, portanto, sujeito aos princípios gerais do Código Penal, o descumprimento absoluto ou a destempo da obrigação tributária, por intermédio de condutas cuja reprovação seja cominada em pena de reclusão ou detenção.
Não obstante diga respeito aos crimes contra a ordem tributária, descrevendo numerus clausus, as condutas que tutelam o direito do Estado de impor e arrecadar tributos e contribuições sociais, a Lei n° 8.137/90 não poderia ser aplicada sem que houvesse uma integração com as normas gerais de Direito Penal, hospedadas no Código Penal.
Essa integração, complexa e carregada de nuanças, é objeto do chamado Direito Penal Tributário.
2.1. RESISTÊNCIA AOS TRIBUTOS
Em toda parte do mundo, dominada por qualquer ideologia, existe a figura do tributo, instituído como decorrência do poder soberano do Estado, para fazer frente às despesas públicas.
Não raro, a história tem demonstrado, quando os tributos são instituídos de forma desmedida, abusiva, que eles são alvo de contestações que podem levar ao surgimento de revoltas, rebeliões e derrubada de governantes.
A rebelião menos ruidosa, mas mais danosa para o Erário, é perpetrada pelos sonegadores, criando uma estranha situação de desigualdade, em que poucos pagam muito e muitos nada pagam. Essa situação iníqua agrava-se diante da ineficácia ou da inexistência de medidas de combate à sonegação.
As normas tributárias, por imporem obrigações cujo cumprimento implica desfalque no patrimônio do particular em favor do Estado, revestem-se da característica de normas de rejeição social, cujo cumprimento só é logrado em decorrência da previsibilidade da imposição de sanções por seu descumprimento.
As pessoas designadas pela lei tributária como obrigadas a entregar dinheiro ao Estado, sempre que praticarem o fato imponível, conforme as descrições legais podem adotar comportamentos diferentes quando diante de obrigação dessa natureza. Podem simplesmente conformar-se com a obrigação e pagá-la, no prazo e na forma indicados na legislação respectiva, ou podem contestar algum ponto que considere ilegal ou inconstitucional da imposição tributária, ou, ainda, podem escolher o caminho da sonegação.
Muitas vezes, contudo, o sujeito passivo busca formas de tornar menos pesada a carga tributária que deve suportar através de mecanismos legítimos, seja abstendo-se de praticar o fato gerador, seja pela exploração de alguma lacuna ou obscuridade da lei tributária.
Ademais, é natural que, à evidência da menor ilegalidade ou inconstitucionalidade de qualquer norma tributária, que os cidadãos, para defender seu patrimônio, se valham dos meios legais de que dispõem para contestar a exação.
O Brasil há pelo menos duas décadas, tem sido um campo fértil para o questionamento das normas tributárias em geral. Não obstante a rigidez normativa de nosso sistema tributário que consagra diversos princípios constitucionais limitadores do poder de tributar, não há dia em que uma norma tributária seja editada e que não possua ao menos um ponto que seja alvo de contestações.
Tal é o inusitado da situação que o Supremo Tribunal Federal chegou a declarar a inconstitucionalidade de uma, outrora, Emenda Constitucional (EC n° 3/93), na parte relativa à cobrança do Imposto Provisório sobre a Movimentação Financeira – IPMF, por contrariar cláusulas pétreas da mesma Constituição.
A corrida ao Poder Judiciário para questionar a cobrança de tributos exigidos ao arrepio da Constituição se, por um lado, permite o exercício de um direito garantido pela constituição, por outro, pode fomentar o surgimento de questionamentos meramente proteladores do cumprimento da obrigação tributária. Cabe ao poder Judiciário repelir tais práticas, que postergam a realização financeira da receita pública, além de causarem o abarrotamento da Justiça, que funciona à custa do Erário.
Para esse triste quadro contribui não só o Poder Legislativo, que formula leis defeituosas e, por isso, inconstitucionais, como também o poder Judiciário com a sua habitual morosidade para julgar definitivamente as questões que lhes são submetidas para exame.
Sob o aspecto financeiro, contestar qualquer lei tributária, com razão ou sem ela, apenas por contestar, pode trazer benefícios financeiros formidáveis.
Entretanto, a par dos contribuintes que se aliam ao Poder Judiciário para afastar a cobrança de tributos inconstitucionais ou ilegais, e dos que adotam medidas defensáveis para alívio da carga fiscal, há os que preferem o caminho do crime para obter esse alívio.
O nível elevado da carga tributária, a profusão de leis tributárias, ditada pela complexidade de nosso sistema tributário e pela necessidade de fazer frente à crescente despesa pública, e a ausência de uma política fiscal que busque preservar o poder de compra da receita pública, cria um quadro propício à sonegação. As razões que justificam esse comportamento antissocial vêm sendo, ao longo do tempo, objeto de estudos de insuspeitos tributaristas, economistas, sociólogos etc., que indicam a existência de uma cultura de sonegação fiscal.
Lastreado na doutrina de David Ricardo e de Adam Smith, o tributarista argentino Hector Villegas[3] teceu importantes considerações acerca das razões que justificam a resistência aos tributos, dizendo:
Durante muito tempo, houve resistência ao tributo, por ser ele considerado fruto de desigualdade, privilégio e injustiça. O cumprimento de obrigações tributárias representava um sinal tangível de submissão e servidão do indivíduo diante do Estado. Daí por que renomados tratadistas consideravam o tributo como um mal, desinteressando-se do estudo de evasão, ou permanecendo indiferentes diante dela, havendo mesmo quem chegasse a estimulá-la. David Ricardo afirma que o imposto, qualquer que fosse a forma que assumisse, somente significava a escolha entre vários males e que, portanto o melhor imposto era o menor imposto. Adam Smith era indulgente com a evasão, que serviria para ‘evitar ao contribuinte a injustiça de impostos prejudiciais à sua atividade econômica’. Muitos, que se horrorizariam se lhes fosse proposto cometer um delito comum, se interessam em conhecer as manobras para iludir a legislação tributária, não excluindo a possibilidade de praticá-las. Isto leva a que conhecidos infratores dessa matéria, longe de serem repudiados pelos círculos sociais onde vivem, sejam bastante invejados pelo êxito econômico que os acompanha, sendo muitos os que aguardam oportunidade propícia para imitá-los.
Embora possa parecer bastante atual o quadro traçado pelo ilustre tributarista, o fato é que essas justificativas deram lugar a uma concepção menos maniqueísta, de que os tributos é que garantem a existência do Estado e realização de seu desiderato.
É bem verdade que a complexidade de nosso sistema tributário e a má aplicação da receita pública, concorrem para que a sonegação fiscal deixe de causar a repugnância social que causam os crimes de outra natureza.
Os motivos apontados, contudo, certamente não são os únicos, pois a pilhagem aos cofres públicos não é vício exclusivo de brasileiros.
No Brasil, a problemática da evasão tributária não mereceu um capítulo especial no Código Penal de 1940, que se limitou a tratar dos crimes relacionados com a cobrança de tributos e contribuições apenas quando arrolou como conduta reprovável o contrabando de mercadorias.
A sonegação fiscal só passou a ser considerada como crime após o advento da Lei n° 4.729, de 14/07/1965, que elegeu quatro condutas reprováveis de diminuição ou supressão de tributo, adotando como elementos nucleares a falsidade ideológica e a falsidade material, que já estavam contempladas no Código Penal.
Ante da referida Lei n° 4.729/65, apenas a falta de repasse, à Previdência Social, das contribuições descontadas de empregados era considerada como forma equiparada de apropriação indébita, segundo o art. 86 da Lei n° 3.807/60.
Até então a repressão à sonegação fiscal era feita através da inflição de multas que poderiam chegar até a 300% do valor do tributo devido, sempre que a falta de seu recolhimento decorresse de ação ou omissão dolosa que visasse iludir ou retardar a ocorrência de fator gerador da obrigação tributária.
Conforme veremos, a Lei n° 4.729/65 jamais chegou a cumprir seu desiderato de combater a sonegação fiscal, talvez por desídia do aparelho fiscal estatal, que, ao que parece nunca se convenceu sobre qual seria a melhor política: contar com a receita que representa a multa ou despender recursos financeiros para processar e encarcerar os sonegadores.
Cobrar multa, reconhecemos, é muito mais fácil do que identificar, na grande massa dos contribuintes, as pessoas jurídicas, a mente criminosa que maquinou a sonegação.
Ademais, é fora de dúvida que o patrimônio social da pessoa jurídica como elemento que oferece maiores garantias de que o Erário receberá o valor do tributo ou contribuição e da multa.
A Lei n° 4.729/65 estava posta e produzindo efeitos, e não havia nenhum motivo aparente que demandasse a sua modificação, não obstante os aperfeiçoamentos sejam sempre bem-vindos. Se, entretanto, era pouco aplicada isso deve ser creditado a razões (ou falta de) de política fiscal, tão somente.
Em lugar de adotar a administração de instrumentos eficazes de combate aos crimes tributários, o Congresso Nacional resolveu mudar a legislação, talvez na ilusão de que somente uma nova lei, sem que fossem alocados recursos humanos e financeiros, fosse suficiente para criar condições de fiscalização que pudesse pôr um freio à sangria nos cofres públicos perpetrada pelos sonegadores.
Veiculada no bojo de normas que buscavam criar mecanismos de proteção às relações de consumo, num período econômica e politicamente conturbado, veio a lume a Lei n° 8.137, de 27/12/1990, que ao revogar a Lei n° 4.729/65, pretendeu, mais uma vez, reprimir a evasão tributária.
É essa Lei n° 8.137/90, ao lado de algumas outras normas esparsas e decretos regulamentadores, que, ao lado do Código Tributário Nacional e do Código Penal, compõem o arcabouço de um “Direito Penal Tributário”, cujo objeto difere do conjunto de normas que buscam reprimir as demais infrações fiscais cuja repressão é feita pela imposição de sanções, previstas na legislação tributária, que constituem objeto do “Direito Tributário Penal”.
2.2. DIREITO TRIBUTÁRIO PENAL – INFRAÇÕES E SANÇÕES TRIBUTÁRIAS
Não obstante devam estar suficientemente delineadas na legislação tributária, como requer o inciso V dos art. 97 do Código Tributário Nacional, a aplicação das sanções tributárias não dispensam, antes, reclamam, a integração com outros ramos do direito.
A diretriz da integração da legislação tributária decorre de disposição expressa do art. 108 do Código Tributário Nacional, que, na ausência de disposição expressa, comete à autoridade competente a aplicação de legislação tributária, o dever de se utilizar, sucessivamente, na ordem indicada de analogia, princípios gerais de direito tributário, princípios gerais de direito público e por último a equidade.
Com efeito, é estreme de dúvidas que as sanções tributárias, no direito positivo brasileiro, constituem um capítulo do Direito Tributário, não obstante à repressão ao inadimplemento da obrigação tributária sejam aplicáveis penalidades, o que, em certas circunstâncias reclamará a observância dos princípios gerais do Direito Penal.
Por outro lado, considerando que a aplicação, em concreto, das penalidades previstas na legislação tributária é ato privativo das autoridades administrativas, não é possível negar a existência de pontos de contado com o Direito Administrativo.
Como já referimos, quando o sujeito passivo de uma obrigação tributária deixa de cumpri-la, no prazo e na forma indicados na legislação respectiva, fica sujeito às sanções, cujas espécies são aplicadas de acordo com as circunstâncias da infração levando-se em consideração a qualificação jurídica que a lei empresta a tais sanções.
Por ora, interessa-nos o exame das sanções tributárias decorrentes da legislação tributária, porquanto os crimes contra a ordem tributária serão objeto de análise mais profunda, a partir dos comentários à Lei n° 8.137/90, adiante.
No magistério do professor Celso Ribeiro Bastos[4], os tipos de sanções tributárias são:
Execução fiscal: objetiva a obtenção coercitiva da prestação devida pelo contribuinte e que não foi feita espontaneamente. A fazenda Pública tem o direito, ou melhor, é o órgão competente para obter através de procedimento executivo o crédito tributário não satisfeito. Ônus moratórios: tratando-se de obrigações pecuniárias não satisfeitas no seu devido tempo, a Fazenda Pública pode recuperar-se do dano patrimonial, derivado da falta de pontualidade do devedor, exigindo ônus moratórios (juros de mora, correção monetária). Pena: tem por finalidade, além de reprimir ou punir o infrator, intimidar o contribuinte para que a conduta ilícita não se reitere ou não chegue a produzir-se. Está onde encontramos a multa fiscal. A pena visa defender a norma jurídica, protegê-la, como já mencionamos anteriormente. Pode ser imposta tanto pelo não-cumprimento da obrigação tributária principal (falta de pagamento de tributo no prazo do vencimento) como em razão do não-cumprimento da obrigação tributária acessória (não-apresentação de livros fiscais, não emissão de documentos fiscais, falta de inscrição etc.).
As formas como essas sanções são aplicadas, são objeto das seguintes considerações do mestre citado[5]:
A constatação e o lançamento da sanção tributária são sempre feitos através de procedimentos tributários administrativos. Para se determinar a penalidade são utilizadas duas formas, uma é a fixação de penalidade de forma invariável, qual diz que, uma vez qualificada a infração, a própria norma estabelece a penalidade que há de ser aplicada. A outra é a fixação de penalidade de forma variável, neste caso, não é a lei tributária que estabelecerá a penalidade fixando-a, mas, sim, a própria autoridade administrativa dentro dos limites legais. Determinado contribuinte pode ficar sujeito a várias penalidades na hipótese de haver diversas infrações. Neste caso pode ocorrer a aplicação simultânea de duas ou mais penalidades.
Tem toda razão o mestre ao arrolar a execução fiscal entre as sanções tributárias, porquanto, tendo por objetivo expropriar bens do devedor, representa verdadeiro castigo ao inadimplente.
Conforme doutrina Humberto Theodoro Júnior[6], “em direito processual, a execução forçada destina-se especificamente a realizar a sanção. E, por isso, Liebman define-a como ‘a atividade desenvolvida pelos órgãos judiciários para dar atuação à sanção’”.
Ao lado da execução fiscal forçada, poderíamos indicar todas as demais medidas de caráter coercitivo de que dispõe o sujeito ativo da obrigação tributária para realizar o seu direito, como a Medida Cautelar Fiscal por exemplo.
Por outro lado, existem outros tipos de sanções tributárias que poderiam ser aditadas à lista preparada pelo professor Celso Bastos, tais como, as interdições, as proibições de contratar com o Poder Público, a apreensão e o perdimento de mercadorias, a sujeição a sistema especial de fiscalização, e o arbitramento da base de cálculo.
As interdições, na legislação tributária, dizem respeito às limitações ao gozo de incentivos fiscais e podem decorrer da própria legislação tributária ou não.
A título de exemplo, podem ser citadas as disposições dos arts. 625 a 627 do regulamento do imposto de renda de 1994, que prevê a possibilidade de restrições ao gozo de incentivos fiscais àqueles que permaneceram em mora contumaz no pagamento de salários, aos que não adotarem medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental, e ao que transgredir as normas da Lei n° 8.212/91, que trata da Seguridade Social.
Outro exemplo de limitação ao gozo de incentivos fiscais encontra-se no parágrafo único do art. 1° da Lei n° 6.368/76. De acordo com esse dispositivo legal, perderão direito a subvenções que venham recebendo das pessoas jurídicas de direito público as pessoas jurídicas que, quando solicitadas, não prestarem colaboração nos planos governamentais de prevenção e repressão ao tráfico ilícito de entorpecentes.
De acordo com o art. 59 da lei n° 9.069, de 29/06/1995, a prática de atos que configurem crime contra a ordem tributária acarretará à pessoa jurídica infratora a perda, no ano-calendário correspondente, dos incentivos e benefícios de redução ou isenção previstos na legislação tributária. Embora carregado de impropriedades, o conteúdo normativo da lei é impor às pessoas jurídicas (e somente a elas) uma nova espécie de sanção pelo descumprimento de obrigações tributárias perpetradas por seus administradores, gerentes ou prepostos, mediante qualquer das condutas elencadas nos arts. 1° e 22 da Lei n° 8.137/90.
Outra questão que emerge desse comando normativo é sobre seu raio de aplicação. Com efeito, se a matéria tratada na art. 59 da Lei n° 9.069, de 29/06/1995, for de cunho exclusivamente tributário, seria aplicável tão somente aos tributos de competência da União. Se assim for, os sujeitos passivos de tributos de competência constitucional delegada a Estados, Distrito Federal e Municípios não estão sujeitos a essa regra, salvo se entendida como norma geral de direito tributário. Ocorre que, por força do inciso III do art. 146 da Constituição Federal, esse caráter de norma geral só acessível à lei complementar.
Todavia, como sustentamos ao menos em sede constitucional, todas as sanções são de cunho penal, em sentido amplo. Assim, por essa vereda, seria possível sustentar que o referido art. 59 veicula norma penal, que, de acordo com o inciso I do art. 22 da Constituição Federal, é matéria afeta à competência privativa da União. Assim, o alcance da norma seria nacional.
A apreensão de mercadorias decorre da legislação de alguns tributos, como o ICMS e IPI, por exemplo, e tem lugar quando forem constatadas irregularidades relativas ao seu transporte, ou a ausência ou imprestabilidade de documentos fiscais obrigatórios.
O regulamento do ICMS do Estado de São Paulo, no n° 4 do § 1° de seu art. 546, prevê a possibilidade de apreensão de mercadorias de contribuinte habitualmente inadimplente com o recolhimento do imposto. Considerando que o sujeito ativo dispõe de outros mecanismos para buscar a satisfação do crédito tributário, determinações como essa padecem do vício de inconstitucionalidade, pois atentam contra o princípio hospedado no inciso LIV do art. 5° da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será privado da sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
A pena de perdimento de mercadoria é encontrada na legislação do IPI e do Imposto de Importação e tem como pressuposto o contrabando de mercadorias. Difere do confisco, pois neste, a expropriação recai sobre bens em que há legitimação ou propriedade, ausente quando do contrabando. O regime especial de fiscalização é aplicado ao sujeito passivo que deixar de forma reiterada, de cumprir as obrigações fiscais, na forma que dispuser a legislação específica de cada tributo ou contribuição.
O arbitramento da base de cálculo de determinado tributo ou contribuição é aplicável diante da impossibilidade de determiná-la com base nos documentos e livros do sujeito passivo, ou quando as informações por ele prestadas não mereçam fé.
É importante notar que, embora algumas das sanções tributárias possam ser aplicadas por autoridades fiscais e administrativas, não se pode transigir quanto à aplicação de todos os princípios constitucionais que resguardam direitos e garantias ao contraditório e a mais ampla defesa.
2.3. PLURALIDADE DE PENAS E VEDAÇÃO AO BIS IN IDEM
A cada ofensa a bem jurídico tutelado pela ordem jurídica deve corresponder uma única sanção. Essa é a ideia nuclear do princípio do non bis in idem. Todavia, em tese, uma ação ou omissão pode ofender a um ou mais de um, bens jurídicos, caso em que caberão tantas penalidades quantos forem os bens ofendidos sem que isso vulnere o princípio referido.
Em face desse princípio, cada ofensa só será punida com uma única penalidade, porque, se não existisse esse limite, diversas penalidade poderiam ser infligidas para uma só ofensa, o que é absolutamente contrário ao princípio da proporcionalidade na dimensão de interdição ao arbítrio. De fato, em matéria penal, o princípio reitor e delimitador da quantidade e da natureza da pena é o princípio da proporcionalidade. Vale dizer, a quantidade de pena a ser aplicada deve levar em consideração o dano em cada caso.
O juízo da proporcionalidade em sentido estrito está calcado na ideia de “retribuição”, o que leva a uma ponderação sobre a justa medida da intervenção. Nesse caso, meios e fins são confrontados para que se pesem as desvantagens dos meios em relação às vantagens dos fins, na busca de equivalência entre eles. No campo penal, esse princípio indica que a pena deve ser proporcional à lesão, ideia já consagrada na Declaração de Direitos de Virgínia, de 16 de junho de 1776, na qual o povo norte-americano declarou, na Seção IX, que “não podem ser exigidas cauções demasiadamente elevadas, aplicadas multas excessivas ou infligidas penas cruéis ou aberrantes”. Esse mesmo princípio foi adotado no item 20 da Magna Charta Libertarum, outorgada por João Sem-Terra em 15 de junho de 1215, no qual está escrito que “a multa a pagar por um homem livre, pela prática de um pequeno delito, será proporcionada à gravidade do delito, e a prática de um crime será proporcionada ao horror deste.”
Do ponto de vista ontológico, não há critério científico que permita afirmar que as penas restritivas de liberdade têm finalidades distintas das penas pecuniárias e restritivas de direitos. Todas elas, enquanto tais são instrumentos que o direito constrói para proteção dos bens jurídicos que são caros à sociedade. Portanto, a distinção entre elas é de grau, apenas, de intensidade da reação e da praticabilidade que está subjacente a toda escolha legislativa por uma ou outra espécie de pena. Essa identidade de função e estrutura entre as penas mais severas (as que implicam restrição de liberdade) e as demais, reforçam a ideia de que a aplicação de uma, exclui a outra sob pena de bis in idem.
Os problemas decorrentes da aplicação de uma cadeia de normas penais para reprimir um mesmo fato e uma só infração talvez pudessem ser ao menos em parte, resolvidos pela aplicação do princípio da absorção. A teoria do Direito Penal conhece a figura da absorção para aplicação das penas em casos de concurso de infrações e de penalidades. Essa figura, prevista no art. 70 do Código Penal Brasileiro, implica a máxima de que a pena mais grave absorve a menos grave, total ou parcialmente.
O fato é que, a uma só ofensa a uma só pessoa ou bem jurídico, não pode sofrer mais que uma penalidade. A previsão normativa de penalidades não é matéria que está à inteira discricionariedade do legislador, posto que as escolhas devem ser legitimadas pelas normas constitucionais (regras e princípios) e pelo código de valores constitucionais vigentes, no qual a liberdade é valor supremo. De nada adiantaria as exigências relativas à legalidade, dignidade humana, proporcionalidade, isonomia etc., se elas não tivessem a finalidade de proteger a liberdade individual do homem em comunidade. Portanto, quando a norma penal escolhe a privação ou restrição da liberdade como pena, ela escolheu o valor supremo da ordem jurídica, o que permite admitir que, essa espécie de pena é a mais grave de todas, só perdendo em importância para a pena capital, que é proibida entre nós.
Assim, se a ação ou omissão que infringe a lei tributária, é também punível com pena privativa de liberdade, a ordem jurídica não pode admitir a aplicação concomitante das duas espécies de penas para um mesmo fato em que há uma só lesão de direitos. Se forem aplicadas as duas penas, haverá a exasperação da pena mais grave, tornando-a desproporcional. De fato, subjacente ao princípio do non bis in idem está a ideia de proporcionalidade da pena em relação à lesão. A pena privativa de liberdade é a mais grave de todas, de modo que, com ela, o ius puniendi atinge o grau máximo e também a escolha do infrator atinge o ápice da valoração sobre o injusto. Logo, se, além da pena privativa de liberdade, ainda houver a pena pecuniária, haverá exacerbação do poder de punir.
3. PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE NO DIREITO PENAL COMO LIMITE DO IUS PUNIENDI E IUS POENALE
A primeira função do princípio da ofensividade desenvolve-se no plano político-criminal e tem a pretensão de limitar o legislador, no momento das suas decisões criminalizadoras. Particularmente, orienta-se no sentido de que os tipos penais sejam criados respeitando-se o axioma nulla lex sine iniuria, ou seja, não há ou não deve haver lei penal sem a descrição de uma ofensa ao bem jurídico.
A segunda e não menos relevante função que o princípio da ofensividade está orientado a desempenhar no âmbito do Direito Penal, diz respeito ao plano dogmático, interpretativo e aplicativo da lei penal. É uma função que pretende ter natureza “material” (garantista) e que possui o seguinte significado: o princípio da ofensividade exige a constatação ex post factum, ou seja, depois do cometimento do fato da concreta presença de uma lesão ou de um perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido.
Particularmente quando o legislador não cumpriu sua tarefa de delinear o tipo penal em termos ofensivos, quando ele descumpriu o nulla lex sine iniuria, é que o intérprete e o aplicador da lei devem fazer valer no caso concreto o nullum crimen sine iniuria.
Quando o caráter da ofensividade não está presente no fato concreto, o juiz, interpretando teleologicamente o tipo legal, deve declarar que a conduta em juízo (sub judice), aparentemente típica ou formalmente típica, na verdade não integra o extremo de fato materialmente típico.
Se o legislador, em suma, não chega a traduzir a garantia da ofensividade em uma formulação típica clara, dando ensejo à possibilidade de diversas interpretações, não cabe dúvida que o intérprete ou o aplicador da lei deve sufragar a que melhor se conforma com o modelo do Estado constitucional e democrático de Direito.
A teoria do bem jurídico e o princípio da ofensividade, como se vê, também no plano dogmático e interpretativo cumprem funções complementares. A teoria do bem jurídico é sumamente relevante para a interpretação do tipo penal. O destinatário natural dessa função dogmática do bem jurídico é o intérprete e aplicador da lei a quem cabe delimitar e individualizar o citado bem protegido em cada norma penal, para que ele cumpra, assim, sua função interpretativa ou dogmática ou exegética. O juiz, de qualquer modo, depois de individualizado o bem jurídico, não pode conformar-se com a mera subsunção formal do fato à letra da lei, pois tem que ainda verificar se o referido comportamento afetou concretamente o bem jurídico. Não verificado esse plus, deve declarar a atipicidade, por inexistência de qualquer infração penal.
Os princípios da exclusiva proteção de bens jurídicos, da ofensividade e tantos outros que emanam a Constituição, em síntese, formam um conjunto de critérios garantistas, que vão delimitando, em cada momento, o poder punitivo do Estado. O controle desses limites, dentro do ius poenale, compete ao juiz.
Mas é evidente que o controle judicial não chega a se antecipar do momento da seleção do bem jurídico e da descrição da modalidade e da ofensa, pois, não adotamos o sistema do controle constitucional prévio. Precisamente por isso é que os critérios limitadores do ius puniendi são critérios negativos de deslegitimação. Na fase interpretativa e aplicativa da lei é diferente, porque agora o controle judicial cristalinamente se faz presente. É preciso controlar o produto bruto do legislador ordinário, que, como mera expressão do ius puniendi, muitas vezes nada mais nos apresenta que um amontoado desconexo de palavras. Ao juiz, a quem compete junto com a doutrina dar os contornos do ius poenale, cabe singularizar o bem jurídico protegido e depois verificar a ofensa concreta.
Quando se diz, então, que o princípio da ofensividade funciona como limite ou critério regente do ius poenale, isso significa o seguinte: o Estado conta com o direito de punir, com o ius puniendi, ou seja, com o poder de intimidar com penas, que é a mesma coisa que o poder de criminalizar. Quando quer proteger determinado bem jurídico, fazendo uso desse poder de punir, ele necessariamente deve se valer da lei penal. A lei pode refletir uma cristalina expressão de técnica legislativa ou, ao contrário, pode ser uns empilhados de palavras e muitas vezes desconexos. De qualquer modo, é na lei penal e por meio da lei penal (nullum crimen, nulla poena sine praevia lege) que o legislador exprime seu poder de ameaçar com penas.
Quando elabora a lei com precisão, ele atende às nove dimensões de garantia da lei penal, que são a lei escrita (Lex scripta), reserva legal (Lex populi), crime previsto (Lex certa), lei compreensível (Lex clara), fato comprovável (Lex determinata), lei proporcional (Lex proporcionalis), lei estrita (Lex stricta), lei anterior (Lex praevia) e a garantia de que não há lei sem ofensa (nulla Lex sine iniuria).
Uma vez elaborado o texto legal, cabe ao intérprete desse enunciado e ao aplicador da lei, em primeiro lugar, extrair da norma qual é a pauta de conduta que está sendo exigida de todas as pessoas, como, no homicídio, é proibido matar, e a norma de sanção. O que e como o juiz deve sancionar quem violar a norma de conduta, e a quem viola a norma de conduta o juiz tem de aplicar à pena. Cada uma dessas normas conta com o preceito primário, o que está proibido, e o preceito secundário, que é a sanção respectiva.
Toda norma de conduta, de outro lado, tem duas dimensões, a valorativa que significa que toda a norma existe em função de um valor, isto é, de um interesse ou bem que o legislador valorou positivamente e quer proteger, e a imperativa, que diz que a norma cria uma pauta de conduta e exige de todos que se comportem de acordo com a pauta estabelecida, e a pauta de conduta é, por isso, coativamente imposta a todos.
A infração penal ou o injusto penal é infração da dimensão valorativa da norma, ou seja, é a violação ou afetação o bem jurídico protegido por ela. Poderá ser numa segunda ótica, mera infração da dimensão imperativa, mera violação da pauta de conduta, mera desobediência. O causalismo, o nazismo, o finalismo e o funcionalismo radical enfocam o delito de acordo com essa segunda dimensão a mera violação à norma imperativa. O neokantismo e a posição Constitucional encaram o delito conforme a primeira dimensão, a violação da norma valorativa, afetação do bem jurídico protegido, por meio de uma lesão ou por meio de um perigo de lesão.
Contudo, passa o princípio da ofensividade a ocupar posição nuclear no sistema penal. É um dos eixos em torno dos quais gira o Direito penal (ius poenale). O princípio da ofensividade como limite do ius poenale então significa que ao juiz compete descobrir, depois de verificada a subjunção formal da conduta à letra da lei, qual é o bem jurídico protegido e se esse bem jurídico foi concretamente afetado, lesado ou posto em perigo. Esse é um dos mais relevantes aspectos da chamada tipicidade material.
Um exemplo doutrinário do que acaba de ser afirmado e interpretando o art. 319.2 do novo Código Penal espanhol na parte aonde cuida das construções irregulares, Silva Sánchez[7] procurou enfatizar que “esse tipo não pode ser entendido literalmente, é preciso constatar se a construção comprometeu as propriedades do meio ambiente. Só no caso de exploração irracional do solo é que há delito”.
Impõe-se evitar terminantemente qualquer interpretação dos delitos como modelos de mera desobediência ou de perigo abstrato, mera infração da norma imperativa. É preciso sempre verificar o que está detrás do texto legal, do enunciado legal. Urge que se descubra sempre a antijuridicidade material, lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico, interpretando-se os tipos penais teologicamente.
Inclusive nos casos de proteção de bens jurídicos supra-individuais tem o princípio da ofensividade uma função relevante a cumprir. Tradicionalmente esses delitos são concebidos como infração de perigo abstrato. Mas também esses bens jurídicos podem ser afetados, desde que não seja compreendida a ofensa como um dano ou destruição no sentido naturalístico. Afetação do bem jurídico, aliás, precisamente porque é um conceito normativo, não é a mesma coisa que destruição do bem existencial, que é um fenômeno natural, visível e perceptível.
A destruição de um bem existencial nem sempre significa afetação (lesão) de um bem jurídico, pois, quem destrói um objeto abandonado danifica um bem existencial, uma coisa, mas não afeta o bem jurídico propriedade, porque a coisa abandonada, quando danificada, não gera nenhum conflito que exija a intervenção penal. Essa destruição material, física, não pode ser confundida com o resultado jurídico em termos de Direito penal, que é uma afetação ou lesão no sentido normativo ou jurídico. Tudo isso revela o quanto é importante distinguir entre dano e a lesão, pois, o dano é um conceito natural e a lesão ou perigo concreto de lesão é um conceito normativo e depende de um juízo de valor. Normalmente o dano físico, quando valorado no plano jurídico, retrata uma lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico. Em regra é assim. Mas essa não é a regra absoluta, porque quem destrói uma coisa abandonada não necessariamente concretiza uma ofensa a um bem jurídico. Da mesma forma, quem destrói coisa própria não pratica nenhum ilícito penal, salvo quando há fraude para iludir terceiros.
O mais relevante efeito prático da função dogmática do princípio da ofensividade, em conclusão, consiste em permitir excluir do âmbito do que penalmente é relevante, as condutas que, mesmo que tenham cumprido formalmente ou literalmente a descrição típica, em concreto mostram-se inofensivas ou não significativamente ofensivas para o bem jurídico tutelado. Não resultando nenhuma relevante lesão ou efetivo perigo de lesão a esse bem jurídico, não se pode falar em fato punível.
3.1. PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE, RESULTADO JURÍDICO E SUAS EXIGÊNCIAS
O resultado jurídico exigido pela tipicidade material precisa ser desvalioso. Somente a ofensa desvaliosa é que integra, ao lado de outros juízos valorativos, a tipicidade material.
A lei é o veículo da norma, a norma é o veículo do bem jurídico, o bem jurídico é o veículo da ofensa. A ofensa consiste numa lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico. Isso significa, dogmaticamente, que o resultado jurídico que é exigido e deve ser constatado em todos os crimes, consoante o teor do art. 13 do Código Penal, é necessário para que esse resultado jurídico faça parte, ao lado de outras exigências da tipicidade material, que o crime precisa ser desvalioso.
O resultado jurídico deve ser em primeiro lugar, real ou concreto, ou seja, o Direito penal da ofensividade não se coaduna com o perigo abstrato. Aliás, em virtude do princípio da ofensividade, pode-se enfatizar que o perigo abstrato é totalmente incompatível com o Direito Penal.
Em segundo lugar, o resultado jurídico deve ser transcendental, ou seja, deve afetar interesses de terceiros. Ofensa a bens jurídicos próprios, ainda que graves, não são penalmen
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